sábado, 2 de maio de 2009

"Ensaio Sobre A Cegueira"

“Se Podes Olhar, Vê. Se Podes Ver, Repara.”
Antes que eu pudesse pensar, abri os olhos. Ainda podia ver tudo nitidamente.
Estiquei meu braço para a direita e ele não estava na cama. Ele com certeza não tinha ido muito longe. Ao levantar para ir procurá-lo, deparei-me com o espelho e a imagem projetada era horrível. Cabelos grossos e sujos, barba mal feita, olheiras muito fundas e rosto pálido. Eu estava horrível. Isto não importava, todas as dezenas de pessoas da minha ala estavam, a diferença entre eu e elas é que elas não se viam. Todos eram iguais, independente da cor dos cabelos, da cor dos olhos ou da quantidade de músculos. Todos eram cegos, literalmente falando. Uma cegueira branca e leitosa.
Cheguei ao corredor. Eu já havia me acostumado com aquele cheiro fétido que penetrava em minhas narinas e provocava uma ânsia quase incontrolável. Os cegos, por não conseguirem chegar até o banheiro, faziam suas necessidades por ali mesmo. Nem mesmo se limpavam, já tinham noção da própria imúndice.
Neste cenário acontecia o sexo mais selvagem e bizarro que eu já vira. A fêmea de pernas abertas gemia quase em gritos ali no chão. O macho roncava e estocava com violência com beijos perdidos no rosto dela. Lembravam-me porcos. Ele gozou. Suor, merda, urina e gozo. Isso que se resumia o homem.
Distante cerca de cinco metros de um homem sentado no chão imundo e que comia um pedaço de pão com bolor verde, lá estava ele. Ele, quem eu amei, no passado. As calças abaixadas até o chão, agachado e olhando fixamente para o nada. Defecava. Parecia um porco. Uma lagrima caiu dos meus olhos no mesmo momento que caiu dos dele. Ele levantou-se, vestiu-se e vinha até mim, tateando uma parede com marcas de mão suja e ainda com os olhos fixos em algo que eu, vendo, não via. Engoli em seco, não sabendo se era para evitar um choro ou evitar um vômito de nojo. Sorri e disse “Limpar-te-ei”.

“Ensaio Sobre a Cegueira”, romance de 1995 do escritor José Saramago, e filmado em 2008 por Fernando Meirelles (Blindness), foi ganhador do prêmio Nobel de literatura. O verdadeiro retrato do Homo Sapiens, onde a Liberdade, Igualdade e Fraternidade estão tão distantes quanto a Ordem e o Progresso Brasileiro.
Uma cidade é atacada por uma epidemia onde todos ficam cegos, uma cegueira branca. Para evitar o contágio, o governo coloca todos os infectados em quarentena em um hospício abandonado. Apenas uma mulher não é infectada.
Se deixados à solta e sem regras, os homens depressa se transformam em animais. O que vale é o extinto de sobrevivência.
Um cego normal vê tudo preto. Enquanto o preto é ausência de cor, o branco é união de todas as cores. A Cegueira branca é uma parábola sobre termos tudo à nossa frente e não vermos nada. O ser humano vive em um estado de cegueira antes mesmo de perder a visão. É perdendo a capacidade de pré-julgar que podemos ter uma relação verdadeira com o mundo. A cura para esta cegueira é reconhecer que dependemos uns dos outros e enxergar o próximo com tolerância e amor.
É justamente nossa visão, real ou metafórica, que nos cega para o que realmente importa. Focamos no valor superficial, como a cor da pele, a orientação sexual e a etnia, o que altera nossas opiniões em função do preconceito ridículo (Afinal, todos o são) e impedem de enxergarmos o que verdadeiramente importa.
Foi necessário que as pessoas não enxergassem para que vissem. Devemos tirar nossas idiotas fantasias de homens e perceber que, para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada.
Nos auto-intitulamos animais racionais por conseguirmos interpretar o que enxergamos, mas interpretamos errado e limitadamente. Podemos destruir o mundo ou o coração das pessoas que amamos. Somos nós os animais 'racionais'?

“Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem." – José Saramago, O Ensaio Sobre a Cegueira, 1995.
(Dedicado à Você)

Cláudio_DeLarge

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